sexta-feira, 4 de maio de 2012

Palavra Comprida


           João é um menino de olhos brilhantes e um sorriso branquinho, sempre à mostra, enquanto corre, atendendo à mãe.
-Menino vá olhar seu irmão!
E lá se vai João correndo depressa, para carregar a criança que chora entre fraldas úmidas e barriga vazia. Cuida do bebê um pouco como se fosse um brinquedinho que se move e chora, e um pouco como se fosse um filho ,que ele protege e acarinha.
O pai abandonou a família, mas aparece de vez em quando, entre uma cachaça e outra, para a alegria de João e conflito da mãe, que não sabe como fazer para prescindir da sua presença. O jeito tem sido contar com João, precocemente elevado à categoria de homem da casa, aos nove anos.
 João é um desses muitos meninos que, cedo, na vida, precisam aprender o significado de uma palavra comprida demais : responsabilidade.
- João, você ainda não foi comprar pão, menino?
-Mãe, deixa eu ir de bicicleta?
É porque o menino, de vez em quando, aparece, entre uma e outra tarefa imposta pela necessidade da vida:
- Mãe, posso usar o detergente para fazer bolinhas de sabão?
Ou surge por encanto, quase como um protesto, numa frase dita de passagem:
-Olha, minha tia, eu sou tão pequeno que, para pôr a mesa, preciso subir na cadeira.
João transforma em pistola de água a mamadeira do irmão. Ou faz o bebê de aviãozinho, mostrando a todos as suas peripécias. E o bebê? Apenas ri com tanto movimento , com as música a alto volume, quase solidário ao irmão que gosta de dançar  “olhando” ele.
-Minha mãe não está, moça, ela foi trabalhar para comprar o leite de meu irmãozinho.
- Você não acha, tia, que esta lata devia durar um ano?
Pois é, João, se a lata de leite durasse um ano, você poderia ser o menino João, para catar as conchinhas na praia sem pensar se deveria vendê-las, ou colher as flores do jardim de sua mãe, para presentear a professora com a qual você sonha, mas ainda não lhe conhece. E talvez, tivesse sua mãe mais próxima a você, penteando seus cabelos tão queimados pelo sol.
-Ah! A escola, tia? Só vou no final do ano.
 Não pode ser no final do ano, João, mas no começo do próximo! Ou do próximo tempo e da próxima vida nova que você espera acontecer, para não ter que brincar apenas nos intervalos e nem ter de pedir um beijo assim, tão envergonhado, como se já tivesse perdido o direito de ser uma criança.
Mas a alma de menino dá sempre um jeito de aproveitar uma distração da vida responsável para correr um pouquinho pela praia na hora de deixar o recado com a vizinha, sentindo o vento no rosto; tomar banho de chuva; brincar de água com o cachorro que precisa tomar banho; ou pirraçar o irmão mais novo ,por pura inveja da sua infância.
 Deixa para mim esses pratos, João, e vai brincar! Não brinca com o tempo porque ele parece bolinha de sabão, mas não é brincadeira e quando ele passa , a gente corre o risco de esquecer a arte de brincar de viver.
Ah!João, se eu pudesse, deixava para mim aquela palavra comprida que não me pesa mais.  E carregava palavra e criança no colo, presenteava sua mãe com incontáveis latas de leite, dava brinquedo e casa grande  para a criança linda e teimosa que insiste em viver no seu coração e brilhar nesses olhos.
Olhos tão comuns. Olhos de sol e de sal. Olhos que nos traduzem, que  nos decifram e que nos convidam a pensar. Olhos grandes e interroga(dores) de criança barrigudinha e descalça. Olhos de um menino brasileiro, habitante de uma vila qualquer.


6 comentários:

  1. Ai Su, que texto LINDOOOOOOOOOOOO. Não tenho comentários a fazer só emoção para sentir. GRANDE ESCRITORA. Bjs
    Alba

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  2. Texto maravilhoso! No momento em que os professores pedem dignidade, a infância pouco vivida de vários meninos e meninas aqui tão bem escrita. Parabéns amiga.

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  3. Criança aprende brincando! Começa a conhecer a vida e as relações inter-pessoais com seus pares, nos seus encantadore jogos e peraltices. Como pode ser privado de uma fase tão importantante e tão essencial, para seu desenvolvimento emocional,e equilíbrio? Só que por ser criança , e por isso esperta, sempre acham uma maneira de, até fazendo coisas de gente grnde, ser criança só por brincadeira!
    Belo texto Su, e como sempre emociona e no remete aquelas lembranças das nossa próprias infâncias, eu no caso sendo a mais nova(caçula), fiz o papel do bebê-brinquedo de todos meus irmãos mais velhos! Lindo demais

    Aidil Andrade

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  4. Que lindo Sú!Vejo nesse texto a figura de vários irmãos de vários pacientes que a gente reabilita...uma infância vista como sofrida por uns, como castigada por outros, porém a infância que foi destinada por Ele!!!E, toda criança tem o seu jeitinho de criar a sua infância, o seu mundo particular!!!Beijos, Irma

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    1. é isso mesmo Irma! nós conhecemos alguns meninos como joão! fico muito feliz que tenha gostado! bjo

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  5. Susana, lembrei de algumas crianças com as quais mantenho contato através do projeto que trabalho. Apesar de serem desprovidas daquilo que chamamos de "bons modos", é tão bom deixar de lado os (pre)conceitos e conseguir observar a beleza do que é ser criança. Por alguns instantes, algumas horas, uma vez por semana, as vezes mais que isso, posso ser testemunha ocular e também personagem de momentos que poucos têm a oportunidade de vivenciar...

    Texto lindo! Sensível! Obrigada por esse presente!

    Beijo. Luciana Oliveira

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