sexta-feira, 25 de julho de 2014

Textos de Memórias 1- O Grampeador









O GRAMPEADOR


                

                    Ele sempre estava rodeado de papéis. No alto da mesa, sentava-se à escrivaninha que ficava no mesmo quarto onde dormia com minha mãe, já que o outro era meu e da minha irmã. Esse era mais um quarto dos livros, pois tinha duas enormes estantes do chão ao teto, circundando toda a parede. Aquilo, aos meus olhos de menina, era uma imensidão. Era como se alguém tivesse desenhado nas paredes livros coloridos e cheios de letras, que eu tentava decifrar, aprendendo a ler. 
             Meus pais dormiam entre os livros como se esses lhes dessem licença para descansar. Eu já percebia que minha mãe, por ciúme do tempo que eles lhe roubassem o marido, não gostava dessa convivência. Ela desejava mais espaço, talvez, na vida dele e  sonhava com um apartamento maior, de três quartos. Meu pai se esforçava,  economizava dinheiro para comprar, compreendendo que, na vida, deveria dar espaço para tudo.
                Enquanto isso, ela tinha de dividir seu amor com a coleção de Machado de Assis, a coleção de Freud, inúmeros livros pesados cheios de pequenos números. Meu pai era professor, matemático, estatístico. Nem sei se nasci para gostar de números, mas, ao longo da vida ,passei a amá-los, já que eles lembravam meu pai.
              Os números, como era ele, são silenciosos. Não são ruidosos e inquietos como as palavras, que pulam dentro das linhas dos livros e carregam as emoções, as lágrimas, as dores e a alegria de quem as escreve. Os números são plácidos, exatos, discretos. Meu pai era numérico, organizado, preciso, disciplinado. Minha mãe  era uma linda palavra, gorda, amorosa, cheia de luz e pulava de uma página a outra, no livro da sua vida. Eles brigavam, mas se amavam e se complementavam como letra e número.
           Ler, para ele também era uma alegria e minha mãe nem sempre entendia isso, quando sentia necessidade de sua companhia para os passeios, para pular o carnaval, para ir às festas de largo. Cada um tinha o seu jeito de ampliar o mundo  e isso eles não entendiam.
                Eu amava os dois .
           À noite meu pai chegava, tirava o paletó, colocava chinelos e escutava música: a bossa nova  era, à época, a nova “bossa” nas rádios, nas vitrolas. Ele escutava feliz, sorrindo,  como quem se banhava naquilo de que sua alma precisava..  
                Eu sentia que para ter um lugar junto ao meu pai, fazer um pouco de barulho no seu silêncio, eu precisava experimentar, provar, saborear  o mundo dele.  Assim, eu  cantava para ele todas as noites, eu o acompanhava para gravar suas músicas e já entendia de belezas que se situavam num lugar diferente da alegria. Ele me ensinou o valor da poesia,  mesmo as tristes. E pelas músicas eu ouvia meu pai, sua musica silenciosa e discreta... como um número.       
                Sentado à sua escrivaninha, ele me carregava para estar ao seu lado, eu devia ter uns seis anos,  e lá ficava entre os papéis e a máquina de datilografia, que guardava mistérios. Mistérios que eu tentava manusear, tocar.
                Numa noite dessas, ele me deixou usar o grampeador.  Duas pilhas de papéis mimeografados: eram provas que os alunos esperavam  no dia seguinte e ele me pediu para ajudá-lo . Feliz,  por fazer algo de tanta importância, fui juntando as folhas.
                E eu as unia, unia, unia de duas em duas e grampeava
                Talvez ali eu unisse dois mundos, talvez aproximasse devagarzinho sentimento e pensamento, número e letra,  homem e mulher, sol e chuva, dia e noite, sol e lua, casa e árvore, casinha com porta e janela, pai e filha. Talvez unisse os gostos diferentes e decifrasse números e letras,  lágrimas e sorrisos, pai e mãe... eu e meu pai
                - Cuidado com o dedo, filha. Advertia, protetor.
                E eu ia juntando dois em dois, unindo, grampeando para sempre, tornando tudo inseparável até o fim dos montinhos de papel, até o fim da noite, até o fim da vida, escutando a bossa nova...ali, lado a lado com meu pai..
                Como era  bom organizar de dois em dois, os sentimentos...


Susana Meirelles








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