O GRAMPEADOR
Ele sempre estava rodeado de papéis.
No alto da mesa, sentava-se à escrivaninha que ficava no mesmo quarto onde dormia com
minha mãe, já que o outro era meu e da minha irmã. Esse era mais um quarto dos
livros, pois tinha duas enormes estantes do chão ao teto, circundando toda a
parede. Aquilo, aos meus olhos de menina, era uma imensidão. Era como se alguém
tivesse desenhado nas paredes livros coloridos e cheios de letras, que eu
tentava decifrar, aprendendo a ler.
Meus pais dormiam entre os livros como se esses lhes dessem licença para descansar. Eu já percebia que minha mãe, por ciúme do tempo que eles lhe roubassem o marido, não gostava dessa convivência. Ela desejava mais espaço, talvez, na vida dele e sonhava com um apartamento maior, de três quartos. Meu pai se esforçava, economizava dinheiro para comprar, compreendendo que, na vida, deveria dar espaço para tudo.
Meus pais dormiam entre os livros como se esses lhes dessem licença para descansar. Eu já percebia que minha mãe, por ciúme do tempo que eles lhe roubassem o marido, não gostava dessa convivência. Ela desejava mais espaço, talvez, na vida dele e sonhava com um apartamento maior, de três quartos. Meu pai se esforçava, economizava dinheiro para comprar, compreendendo que, na vida, deveria dar espaço para tudo.
Enquanto isso, ela tinha de dividir
seu amor com a coleção de Machado de Assis, a coleção de Freud, inúmeros livros
pesados cheios de pequenos números. Meu pai era professor, matemático, estatístico. Nem sei se nasci para gostar de números, mas, ao longo da vida ,passei a amá-los, já que eles lembravam meu pai.
Os números, como era ele, são silenciosos. Não são ruidosos e inquietos como as
palavras, que pulam dentro das linhas dos livros e carregam as emoções, as lágrimas,
as dores e a alegria de quem as escreve. Os números são plácidos, exatos, discretos.
Meu pai era numérico, organizado, preciso, disciplinado. Minha mãe era uma linda palavra, gorda, amorosa, cheia
de luz e pulava de uma página a outra, no livro da sua vida. Eles brigavam, mas se amavam e
se complementavam como letra e número.
Ler, para ele também era uma
alegria e minha mãe nem sempre entendia isso, quando sentia necessidade de sua
companhia para os passeios, para pular o carnaval, para ir às festas de largo.
Cada um tinha o seu jeito de ampliar o mundo
e isso eles não entendiam.
Eu amava os dois .
À noite meu pai chegava, tirava
o paletó, colocava chinelos e escutava música: a bossa nova era, à época, a
nova “bossa” nas rádios, nas vitrolas. Ele escutava feliz, sorrindo, como quem se banhava naquilo de que sua alma
precisava..
Eu sentia que para ter um lugar
junto ao meu pai, fazer um pouco de barulho no seu silêncio, eu precisava
experimentar, provar, saborear o mundo
dele. Assim, eu cantava para ele todas as noites, eu o
acompanhava para gravar suas músicas e já entendia de belezas que se situavam
num lugar diferente da alegria. Ele me ensinou o valor da poesia, mesmo as tristes. E pelas músicas eu ouvia meu
pai, sua musica silenciosa e discreta... como um número.
Sentado à sua escrivaninha, ele
me carregava para estar ao seu lado, eu devia ter uns seis anos, e lá ficava entre os papéis e a máquina de
datilografia, que guardava mistérios. Mistérios que eu tentava manusear, tocar.
Numa noite dessas, ele me deixou
usar o grampeador. Duas pilhas de papéis
mimeografados: eram provas que os alunos esperavam no dia seguinte e ele me pediu para ajudá-lo .
Feliz, por fazer algo de tanta
importância, fui juntando as folhas.
E eu as unia, unia, unia de duas
em duas e grampeava
Talvez ali eu unisse dois
mundos, talvez aproximasse devagarzinho sentimento e pensamento, número e
letra, homem e mulher, sol e chuva, dia
e noite, sol e lua, casa e árvore, casinha com porta e janela, pai e filha. Talvez
unisse os gostos diferentes e decifrasse números e letras, lágrimas e sorrisos, pai e mãe... eu e meu
pai
- Cuidado com o dedo, filha. Advertia,
protetor.
E eu ia juntando dois em dois,
unindo, grampeando para sempre, tornando tudo inseparável até o fim dos
montinhos de papel, até o fim da noite, até o fim da vida, escutando a bossa
nova...ali, lado a lado com meu pai..
Como era bom organizar de dois em dois, os sentimentos...
Susana Meirelles
Belo texto!
ResponderExcluirLindo! Ele era assim mesmo! Ainda guardo o grampeador dele :) Pra mim esse grampeador era o máximo hahaha
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