sexta-feira, 27 de julho de 2012

Jardim da Infância

Todos nós viemos de um jardim. Mais do que as flores que cultivamos, lá fomos, pouco a pouco, compreendendo as consequências da nossa ação no mundo. Lá aconteceu a semeadura e a colheita, na leveza do algodão onde brotam até hoje os nossos pés de feijão. Pequenas formigas trabalhadeiras e cigarras preguiçosas. Casulos e lagartas pacientes.
No jardim ensaiávamos, com nossos coloridos desenhos, a vida futura e já nos revelávamos: casas com janelas abertas como um sorriso, limitadas por minuciosas cercas com flores ou com espinhos, protegidas por frondosas árvores aos pares, como pais. Árvore que dava todos os frutos, só para ficar mais colorida. Ou casinhas abandonadas, escuras e vazias na floresta, à espera de um encanto, uma fada ou um duende de jardim.
Se em nossas brincadeiras, corríamos ou nos escondíamos, se escolhíamos ser mocinhos ou bandidos, heróis ou transgressores, aventureiros ou tímidos, estávamos, sem saber, tirando fotografias para o baile de fantasias dos papéis que viveríamos na vida.
Esse é o jardim da infância.
Lembro de Rilke, aconselhando ao jovem poeta: “caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga a si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegasse a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer á tona as sensações submersas deste passado vasto; sua personalidade ganhará firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma habitação a meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros”(RILKE,2009 )
A infância é relíquia constituída de lembranças guardadas. Mas, como uma parábola, seu registro são histórias sempre revistas, recontadas e modificadas, conforme o tempo e as nossas vivências. A infância é parte de nós e parece massa de modelar.
Não podemos jamais ter a certeza dos acontecimentos, porque nossa memória usa lentes coloridas, com cores que variam conforme o tempo; por isso, os eventos importam menos do que as interpretações que deles fizemos e que deles ainda faremos, no curso da vida.
Nossas lembranças, criadas com os personagens, enredo, trama, drama, final feliz ou triste são as histórias às quais, ao longo da vida nos reportamos, para dizer quem somos. De nossa infância importa muito mais o que se conta, revelando o nosso presente, do que aquilo que de fato vivemos. Somos personagens de nossos dramas, mas também somos, de nossa história, os contadores.
Acontece que costumamos valorizar, nas nossas lembranças e histórias, as feridas da infância, com suas chagas nunca cicatrizadas. Carregamos a criança ferida que pede cura e nas suas queixas, revive o enredo, numa repetição que não escolhe fazer, mas que pode vir a ser uma maneira de inventar outro fim. Repetir pode ser uma forma de superação, desejo de uma nova criação.
Porém, a repetição das experiências com outros personagens e novos cenários, é um monótono sofrimento, que indica uma mudança que ainda não foi feita na história em que somos sempre protagonistas.
É preciso acolher essa criança ferida, escutá-la e lembrar-lhe, caso esteja esquecida, que as quedas também faziam parte das brincadeiras da vida.
E se somos contadores e personagens, é importante recordar a criança feliz e viva dentro de nós, que se deixava levar pelas descobertas, naquele jardim.É essa a criança que há muito tempo cultiva, em silêncio, coloridas flores da Alegria, da Coragem. Flores da Liberdade, Autenticidade, Criatividade, Confiança  e Afeto. Foi ela que nos ensinou sobre o Amor, o Desejo e a Persistência. Foi ela quem acreditou no futuro como um lugar para assistir ao reflexo do que no jardim da infância cultivou.
Nesse jardim podemos descobrir não apenas o lugar de nossas quedas, mas os atalhos para o que hoje somos e amamos, porque foi lá que ficou escondido o mapa de nosso tesouro.
Que possamos viver de forma tal, que celebremos a criança feliz que fomos e que possamos imprimir, com seus lápis de cor, tanta vida, que ela possa nos ajudar a contar e a redesenhar a nossa história.


Susana Meirelles






REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA


RILKE, Rainier- Cartas a um jovem poeta; tradução de Pedro Sussekind- Porto Alegre;L&PM, 2009

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