Quando eu te vi pela primeira vez,
estavas escondida, encolhida, nos cantos do meu quarto.
Disfarçavas e surgias, no medo de escuro,
pesadelos, fantasmas, sombras da infância.
Eu trancava as portas, vigiava janelas, temendo que
me levasses tão cedo,
posto que nos contos de fadas, eras sempre tu, a ladra dos inocentes.
Mais tarde, apareceste-me nas missas ,sombrias
e tristes.
em mistérios indecifráveis, nos crucificados
e em santos ,nos mártires que a ti se entregavam.
Não entendia os gestos heroicos sos personegens que por mim
desfilavam,
nas aulas de
história.
Eram loucuras o que faziam por ti.
Eras tão temida quanto venerada.
Ocultada no amor à pátria, a um povo , a um sonho.
Por um ideal, tantos te entregaram a vida
e eu não compreendia suas razões.
Não havia o mar, o amar, o riso, o sol dourando tudo?
O azul em toda parte, despejando vida ?
estrelas a seguir, sonhando?
Amor no corpo, palpitando?
Distraí-me nas belezas da vida;
porém, disfarçando, percebia-te disfarçada.
Eras a maldita, eras muito mal e pouco falada,
cercada de silêncios e penumbras, como se não existisses.
Enganou-me, quando acreditei que já tivesses me deixado.
Levou-me um bem tão caro, tão raro e, junto, muito de mim.
Por temer teu retorno, sacrifiquei parte da vida:
perdendo para não perder, sofrendo para não sofrer,
sem notar que assim te amava e te aguardava,
precavida.
Pintaram-te de negro, tão negro quanto a minha inconsciência.
Sim, eu a temia , mas escutava em bom som as músicas
alegres da juventude.
Era eu a mais barulhenta, a mais risonha, a mais amada.
Para não te ouvir, vestia a vida com cores alegres, seguia
meu caminho...
Mas em muitas noites temi as perdas, as ausências,
procurando-te nos rodapés.
Foi-se o tempo, foi-se a vida.
Passaste por mim através do relógio e dos calendários.
E, em formas indizíveis, senti a dor de tua presença
nas repetidas
perdas do paraíso.
Apareceste algumas vezes: vidas e sorrisos levaste de
mim.
Foi inútil te evitar ou te questionar, aceitei,
pois não me escutavas e eu não tinha coragem de te
enfrentar
face a face, arriscando-me a descobrir-te viva.
Um dia vieste até mim,
encantando-me com tuas promessas,
quase a segui, pois cansada estava.
Mas a tempo enfrentei , não me rendi,
desviando-me, quase abraçando-te, suplicando-te:
“Deixa-me ficar?”.
Levaste-me alguns dos meus dos mais queridos
Com você foram amores , amigos,
Amores, amigos queridos.
Agora, por fim, sem saída,
decido –me por fazer as pazes contigo,
Com coragem, sento-me para te escutar.
“-Afinal , o que
desejas de mim? O que tenho eu para te dar?”
E tu nada respondes, só me convidas a dançar.
Percebo-te suave, criança.
Voz doce, meiga, como fui na minha infância.
Duro dizer, mas pareces comigo...
Disseste-me que não entendes o porquê das lutas,
pois nada de mim desejaste tirar,
mas que sempre esteve ao meu lado
como anjo , aconselhando-me , ajudando-me a caminhar.
És tu quem me presenteias todos os dias,
com sentido, esperança, motivos.
És, da vida a herança, destino e ponto final.
E porque existes é que vale a pena sonhar, viver, amar,
usar de palavras, de ações ,declarar amores.
Pedir perdão ,sentir gratidão.
Tolerância, doçura, compaixão
Paz, até entre nações.
Até na fome estás presente.
No útero, no embrião.
Nos princípios, na vida nascente
Se para ti , serenamente, olhássemos,
mais alegria teríamos.
Há sempre tanto por construir!
Sentiríamos mais de perto as urgências,
coração mais palpitante, mais vigilante.
Maior seria a busca pelo belo, pelo bom e
pelo eterno.
Sem ti nada disso faria sentido.
Nem finalidade teria a vida.
pois infinito só se faz,
na certeza da finitude.
Enquanto te escuto . quase sorrindo,
estranhamente, dançando contigo,
penso e repenso minha vida.
Depois de cada uma das tuas passagens,
houve impulso, desvio, mudanças.
Desde criança estás comigo, doando-me a vida.
E, em silêncio, agradecida, beijo-te as mãos.
E agora que nos tornamos amigas,
nunca mais me perseguirás, nem eu a temerei.
Minha vida verdadeira começou , agora mesmo,
dançando contigo
posto que só nessa dança da morte com a vida,
Vida tem sentido.
Compreendi os passos dessa cadência:
Vida sem morte, é morte em vida.
Porque vida
com morte
É vida com fim.
Vida
sem morte
É vida
sem
fim.
Susana Meirelles
Que poema maravilhoso! Emocionante, inteligente, espiritual... Cheio de poesia, conseguiu traduzir como nunca tinha visto antes a morte, os sentimentos que a acompanham e o seu verdadeiro sentido. Nos faz perceber como a morte pode ser na verdade amiga inseparável da vida. Muito lindo, parabéns!
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