Há muito
tempo atrás, eu imaginava o céu como o lugar dos anjos e dos pássaros, já
que eles poderiam voar. As borboletas coloridas também estariam no céu
enfeitando o azul, mas elas voariam mais perto de nós. Entre os três, apenas os
anjos subiriam tão alto, a ponto de não podermos enxergá-los.
Nas aulas de religião aprendi que entre os anjos
existiriam hierarquias e subdivisões. Haveriam os Serafins, Querubins, Tronos,
Virtudes, Potestades, Principados, Arcanjos e Anjos da guarda. Todos teriam
missões diferentes e cumpririam as ordens de Deus. Anjos da Guarda, por
exemplo, teriam o dever de estar conosco, caminhando ao nosso lado, cochichando
em nossos ouvidos, lembrando-nos os caminhos e escolhas. Somos felizes quando vivemos o nosso dom, o melhor de nós
mesmos e nossos anjos da guarda sabem disso porque fazem o mesmo. Sair do nosso
caminho é nos afastarmos de nossa essência, de nosso coração, de nossa alma.
Mas como a maioria de nós não sabe escutar o coração, precisamos dos anjos ao
nosso lado.
Além daqueles que voavam tão alto, no céu, eu acreditava que
outros anjos teriam escolhido ficar por aqui, entre nós, disfarçados, para não
serem identificados. No entanto, um dia, sem que eles se dessem conta, deixariam
escapar seus sinais : suas asas, sua graça e seus olhos de céu. Você não sabe o
que são olhos de céu? É uma forma incomum de
ver a vida, com bondade, beleza e com uma graça especial, única, que
distingue os anjos dos homens.
Foi na faculdade de Psicologia que conheci Kátia, quando iniciamos juntas a usar o dom
especial que os psicólogos possuem, que é a vontade voar para dentro de si e lá dentro,
encontrar o melhor de si mesmas, ajudando os outros a fazerem o mesmo. Kátia
era uma moça loura de cabelos cheios e compridos, muito bonitos, que ela sempre
prendia para que não voassem muito, ao vento. Quando , porém , ela os soltava,
era tão belo quanto um abrir de asas e as pessoas ficavam encantadas. Kátia
também tinha olhos muito bonitos. Olhos cor de céu. O mesmo céu onde
moram os anjos, pássaros e borboletas. O
céu dos que sabem voar para dentro e para fora. E eu notei que ela sabia...
Anos depois, eu a reencontrei trabalhando com crianças
com deficiência. Ela estava tão bonita quanto sempre foi. Olhei bem e vi os
mesmos cabelos, ainda presos, querendo se soltar, querendo voar um pouquinho,
mostrar quem são.
Algumas pessoas que trabalham com crianças com
deficiência, esforçam-se para
aprisioná-las à sua forma, tentando ajustá-las, moldá-las. Notei que Kátia
fazia diferente: ela se esforçava por se
fazer entender por elas e, bem ao contrário
do que fazia com seus cabelos, empenhava-se para que se soltasse de dentro delas
a inteligência aprisionada, os dons, as asas. Observando-a, ela me fez crer que
todos podemos ser anjos, pois temos asas para voar e, se assim acreditarmos, podemos
pairar bem alto, no céu, abraçados com os nossos dons.
No entanto, foi na comemoração do dia das crianças que
Kátia se revelou. Estávamos todos dançando ao som dos tambores de uma banda,
“Swing do Pelô”, especialmente contratada para animar a festa. Estávamos todos:
funcionários, crianças e seus pais, girando numa grande roda e, todos ali, tínhamos
deficiências, tínhamos dons, porém, naquele momento, ao som daqueles tambores que
me pareciam mágicos - certamente por conversarem com as batidas do nosso
coração - só tínhamos asas. Numa dessas voltas eu notei que a banda trazia estampada
nas camisas uma expressão, como lema: "força de vontade”.
Percebi que era
com força da vontade que ali estávamos. Com
força de vontade aquelas crianças haviam
nascido, superando dificuldades que, muitas vezes, lhes deixaram com asas quebradas.
Ali, estavam suas mães que, com força de vontade traziam suas crianças e delas
cuidavam, atravessando distancias, carregando-as pela vida. Como anjos, aceitaram
a missão de cuidarem dos filhos que delas precisavam para aprenderem a escutar
o próprio coração. Girando na roda estávamos todos nós, carregando nossos anjos
, nossas crianças interiores, muitas vezes esquecidas, mal cuidadas,
aprisionadas. Todos ali desejávamos viver com a força da nossa vontade, com nossas asas, nossas amarras,
nossas deficiências e nossos dons.
E lá estava Katia a correr de um lado para outro, ajudando
crianças a dançar, a brincar, atenta a todos, com seus olhos de céu. A banda também tocava a liberdade:”Força e pudor/ Liberdade
ao povo do Pelô /Mãe que é mãe no parto sente dor/E lá vou eu.”..
Lá íamos nós girando, quando Kátia percebeu um menino
que, paralisado dentro do próprio corpo, olhava para a roda. E ela, que aprendeu
a entender palavras aprisionadas, correu em sua direção e trazendo-o na cadeira
de rodas, improvisou uma dança, empunhando a cadeira de um lado para o outro,
girando , girando, com esforço, girando e girando, com ele dançando. E a criança, fez asas de seus olhos e dançou,
voou , sorriu e do seu jeito, falou. Mais distante, assistindo ao seu filho a mãe sorria satisfeita, dançou também, deixando cair uma discreta lágrima...afinal, “mãe que é mãe no parto
sente dor...”
Eu sei que talvez Kátia
não entenda essas minhas palavras quando
lhes chegarem às mãos. Afinal- perguntará ela - o que há de tão extraordinário nisso? pois, não é dever missão?
Sim..sei que isso é saber viver escutando o coração ... mas, eu escrevo, porque ali, naquele momento em que ela dançava com o menino ao som dos tambores, lembrei do tempo em que eu olhava o céu procurando anjos e acreditava que poderia encontrá-los em alguma parte , talvez bem perto de mim, bem disfarçados, para não serem reconhecidos...
Sim..sei que isso é saber viver escutando o coração ... mas, eu escrevo, porque ali, naquele momento em que ela dançava com o menino ao som dos tambores, lembrei do tempo em que eu olhava o céu procurando anjos e acreditava que poderia encontrá-los em alguma parte , talvez bem perto de mim, bem disfarçados, para não serem reconhecidos...
Sei que Kátia não vai entender as minhas palavras, nem a
emoção nelas aprisionada, porque acreditar que tudo isso é tão comum e tão
normal é exatamente onde está a sua Graça. É onde está o seu dom, onde se abrem as asas que a conduzem a
voar tão alto e tão fundo, dentro dela mesma, em direção ao melhor que tem em si. Porém, para mim, que a tudo assisti, creio que ela revelou o seu segredo : Kátia olha o mundo com olhos de céu.
Susana Meirelles
Su
ResponderExcluirObrigada pelo texto tão lindo. Fiquei emocionada.
Você diz que eu tenho olhos de céu mas é vc quem tem coração de anjo.
Bjo no seu coração
Katia Duran