quinta-feira, 14 de junho de 2012

O Amador


Quando alguém não domina uma técnica, uma arte ou um ofício chamam-no amador. Ainda não profissional, é amador. Também, todo aquele que exerce uma profissão por gosto, por puro prazer, é amador. Para o amador não tem ensaio, não tem acerto nem erro, não tem salário nem cansaço. Por tudo isso, quem ama é amador.
Há, porém, os profissionais. Profissionais do amor.
O colecionador, que enumera suas conquistas, imaginando que assim encontrará o seu valor,sofre pelo que acredita. Será que precisa ter tanto para ter um pouco de amor?
 O calculador, que - com a liberdade medida por quanto pode ser declarado, revelado – se dá numa entrega calculada, ilude-se, sim, pois não conquista o amor, já que este, sem cálculo, surpreende em situações e pessoas que ele não prevê. Acredita precisar ser muito, para ter um pouco de amor.
O avaliador não crê que ele (nem ninguém) seja o bastante: nunca tão belo ou tão atraente. Busca a si mesmo, refletido no olhar do outro. Sua dor é a de acreditar que precisa mostrar-se perfeito, para ter um pouco de amor.
Eles colecionam, calculam e avaliam as dores. Do amor, importam-se com as dores: a rejeição, a vulnerabilidade, a desvalorização.
São “ama-dores”.
O amador entrega-se, sem temer. Ainda que sofra por um telefonema que não chega, pela palavra que não foi dita, pelo mal-entendido, pela interpretação que foi feita, pelo não esclarecido. O amador entrega-se, mesmo que seu tempo fique marcado no compasso das sístoles e diástoles: Tempo de encontro, tempo de desencontro; tempo perdido, tempo recuperado. Ele bem conhece esse compasso.
Alguns Amadores tornaram-se imortais através da escrita. Talvez o amor lhes tenha transcendido e seus personagens atravessam o tempo. Alguns cantaram a beleza do amor, outros as suas dores. É desse tempo assim demarcado - tempo da dor e do amor - que Machado de Assis fala, do encontro com o amor, na voz de Dom Casmurro:


Retórica dos namorados. Dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade de estilo, o que foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que dá idéia daquela feição nova... (Assis, 1955,p.110)

A idealização, a supervalorização da pessoa amada, o sentimento de ter pouco valor e o temor de onde isso irá levar parece ser a origem da dor do amor.

...Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me (Assis,1955, p.110)

O amor, descobrimos sem ensaio. Surpreende-nos. A sua busca ansiosa mais o faz afastar-se; mas, espontâneo, ele se revela onde não esperamos. A sua presença transforma em futilidades os problemas do cotidiano e tudo o que gravita em torno do ser amado adquire uma aura de encantamento. A alegria do encontro torna-se um marco no mapa que, a partir daí desenha-se, e sua lembrança, tão intimamente comemorada, torna-se uma história frequentemente recontada em seus acasos e encontros, como um evento que segue uma destinação superior. 

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida; eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse faltava-me língua. Preso atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas (Assis,1955,p.114)

Amar, para Roland Barthes, é “a festa, não dos sentidos, mas do sentido”. É a felicidade de ter encontrado alguém que, “por sucessivos e sempre bem-sucedidos toques, acaba o quadro da fantasia”, como um jogador “cuja sorte se confirma fazendo com que ele pegue na primeira tentativa, o pedacinho que vem completar o quebra-cabeça do seu desejo”. (Barthes,2000,p128)
E se nada é mais belo do que apaixonar-se, do mesmo modo, nada parece despertar maior medo. Amar é uma viagem para dentro de si, e entregar-se ao encontro é a coragem de ver-se na sua verdade, como uma cena diante do espelho.

Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com um pente, desde a testa até as ultimas pontas, que lhe desciam á cintura... (Assis,1955,p.112)

O inicio do amor é o da descoberta maravilhada das afinidades, das trocas. Ambos querem se mostrar um ao outro. A pessoa amada torna –se em tudo original. Única. Por isso, engana-se quem  acredita na forma perfeita para ser amado, pois o amor não começa nem termina nas qualidades ou defeitos do outro. Engana-se quem acredita que precisa ser especial para ser amado, porque é por sermos amados, que nos tornamos especiais.


...Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de oficio, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis... (Assis, 1955, p.112)

É preciso saber que viver o amor é iniciar um caminho longo para dentro de si.

...Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. (Assis, 1955, p.113)

O “ama-dor” sai em busca do amor tecendo duas tranças intermináveis: a fantasia do romance ideal e a ilusão de que o outro completaria as suas faltas. Compara-se com um ideal que nunca poderá realizar. Insiste que algumas facetas suas não podem ser conhecidas nem merecem ser amadas. Por isso, a entrega é sentida como um risco, um empobrecimento de si. Espera do outro o que ele não pode oferecer. As suas conquistas nada preenchem. O “ama-dor” é frequentemente atormentado pelo medo: de perder ou de perder-se no amor. A idealização que constrói a respeito de como deve ser o amor e a pessoa amada impede-o de enxergar que o ser humano que está nesse momento ao seu lado é a pessoa perfeita, por revelar quem ele é e por fazer parte da trama que é formada no caminho para amar.
O amador vive o amor que descobre no espelho que se situa um pouco além da pessoa amada. Pois é no encontro consigo, na aceitação das suas faltas jamais preenchidas pelo outro, que é possível descobrir como é amar verdadeiramente, trançando, diante do amor, uma felicidade real, junto com suas inevitáveis dores.
Creio que os amadores já compreenderam o que escrevo. Todavia, para os “ama-dores”, recomendo que leiam devotadamente a história de Dom Casmurro.
Para amar, é preciso ter a coragem de tornar-se alguém capaz de se aceitar, tornando-se uma pessoa não completa, mas inteira, como aquela palavra que une amor e dor: Amador.



Susana Meirelles







REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ASSIS, Machado-  Dom Casmurro vol. 7,  Obras Completas de Machado de Assis- W.M. Jackson Editores, São Paulo, 1955


BARTHES, Roland,-  Fragmentos de um Discurso Amoroso,  15º edição, Francisco Alves Editora, São Paulo, 2000.



domingo, 3 de junho de 2012

Cordeirinhos

Acreditamos tanto na felicidade que nossas experiências de vida nos trazem, que elegemos algumas, fazemos uma lista e nos convencemos de que só quando as alcançarmos estaremos bem. Porém, não percebemos ser esta, uma forma de adiarmos indefinidamente a vida que desejamos.
Há ainda outra lista sobre a qual não ousamos falar, nem olhar, pois é composta pelas experiências que tememos enfrentar. Diante delas, cercamo-nos de muitos cuidados para evitá-las e nos mostramos precavidos, quando , na  verdade, sofremos pelo medo. Quando somos prudentes, evitamos um risco real, todavia, no medo, o risco é inspirado pelos nossos fantasmas.
Na vida, há experiências que podemos evitar, enquanto outras parecem ser muito maiores do que nós e do que a nossa pequena vontade de sermos felizes apenas como idealizamos. Nesse nosso mundo, onde a felicidade parece garantida por cartões de acesso a facilidades, esquecemos o quanto é exatamente por meio da superação que podemos encontrar o que tanto buscamos. Por isso, nosso cartão de acesso à felicidade, às vezes, é a dor.
Somos confusos em relação ao poder que temos. Acreditamos, muitas vezes, que podemos mudar bem pouco do que estamos vivendo, quando, na verdade podemos mudar muito; outras vezes, sofremos por interpretarmos como impotência nossa, o que se trata de uma impossibilidade real.
O tempo nos mostra que há momentos em nosso percurso, em que a única coisa a ser feita é nos conformarmos como cordeirinhos mansos, confiando que a vida, como um bom pastor, nos conduzirá a um lugar seguro depois que caminharmos por alguns vales. 
A renovação nos alcança como o outono surpreende o verão. E ela pode vir disfarçada na doença, na perda, no luto, na dor. Cabe-nos o trabalho de transformação: o de nos conhecermos através daquela experiência; Cada vivência, se bem assimilada, nos prepara para a próxima. No entanto, ao fugirmos da mudança necessária, a experiência seguinte pode ser mais difícil de ser vivida.
Precisamos compreender que felicidade não é estar alegre a todo o momento como nos fizeram crer. Talvez seja a conquista da serenidade, seja qual for a experiência pela qual estejamos passando. Mas, infelizmente, não é sempre que nossa vontade míope alcança a beleza da primavera além do esquadrinhamento da janela por onde vemos o mundo.
A vida é sempre maior do que o que acreditamos e desfila por caminhos que a nossa previsibilidade desconhece. Tudo aquilo que dela ainda não  assimilamos, pode ressurgir com mais força, para nos lembrar dos compromissos com a mudança que nós tanto desejamos.
Precisamos aprender a confiar na vida e em seus caminhos. E, Mesmo que andemos pelos vales da sombra e da morte, não temeremos mal algum, pois teremos confiança nos recursos que a vida oferece sabendo que ali pode estar a oportunidade tão almejada.
Portanto, guarde a sua lista de sonhos e acredite nela, mas encare também os seus medos. E quando uma experiência mais difícil surgir, acredite que ela pode ser o vale que lhe conduzirá àquela montanha linda e azul, logo ali... adiante.




Susana Meirelles