sexta-feira, 18 de maio de 2012

O Voo dos Sentimentos

Sentimentos são difíceis de definir: talvez por excesso de  sensibilidade, eles prefiram não ser incomodados com as nossas perguntas. Certamente, porque perguntas são habitantes do reino da razão e os sentimentos vivem no reino da sensibilidade. Nós é que necessitamos unir os dois reinos pela ponte das palavras. Acontece que, muitas vezes, teimamos em usar as palavras, não apenas como um transporte, mas para traduzir, explicar, adaptar em conceitos o que é para ser apenas ...sentido.
Eu já lhe disse? As palavras são como pássaros, embora não sejam suas letras a alçar voos, mas, sim, os sentimentos que as acompanham. São eles que inundam as palavras , e delas transbordam, transformando-as em pássaros. Todo poeta sabe o quanto os sentimentos ultrapassam as palavras, já que, por serem poetas, frequentemente  assistem ao momento em que esses belos pássaros libertam-se, em revoada, com suas asas abertas, da tinta, do papel , do livro onde estavam inscritos.
Rilke, usando palavras cheias de sentimento, escreve cartas a um jovem poeta. Em uma delas, esclarece: “as coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se no espaço que nunca uma palavra penetrou , e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas , cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.”( Rilke,2009) 
            Nós, que não somos poetas, e temos vidas que passam, vivemos da ilusão de que um dia encontraremos as palavras certas onde se encaixarão todos os sentimentos. Acreditamos nos organizar explicando tudo. E, às vezes, nem reparamos que, quando tentamos arrumar os sentimentos dentro das palavras, eles nos escapam e desaparecem como por encanto.
Ah! Mas como insistimos em afugentá-los!
Quando Saudade, branco como a pureza do encontro, vem, lentamente, sobrevoando o nosso peito cansado, começamos as perguntas geográficas:" De onde vinha? Para que vai? Vai voltar?"
Quando melancólicos, Tristeza vem, com as suas asas cinzentas - ternamente - para dentro do nosso coração; assustados, fazemos as perguntas históricas: "Por quê ?  Como foi o passado? Como será o futuro?"
Se Alegria, veloz e com suas penas das cores do arco-íris, aproxima-se, saltitante, desejando habitar em nossa alma, já lhe entristecemos com nossas questões gramaticais: "Descreva,  narre, interprete".
Se Amor, cor-de-rosa quente e delicado, aponta no horizonte, que repentinamente se torna mais belo, já começamos com as perguntas matemáticas: "Quanto?  Quando começou? Quando acabará?"
Psiu! Amando, feche os olhos sob as estrelas, em silencio, e sinta o amor  dentro da sua alma.  Apenas sinta. Não busque perguntas para explicá-lo ou poderá perdê-lo. É assim que ele vai tomando corpo dentro do seu peito e o sentimento  agitará as suas asas e o transportará suavemente. Se você permitir, ele voará de mansinho,  indo direto ao coração daquele que é amado por você. Continue de olhos fechados, respire fundo e experimente o que o amor pode fazer, no silêncio das perguntas. Não o incomode. Aceite a transformação em  sua vida, antes vazia e sem cor. Sinta. Não pense, para que as perguntas não comecem a invadir o reino dos sentimentos.
A palavra amor é o nome. Responde em parte às suas perguntas, mas note que, essas quatro letras reunidas não modificam e nem de longe alcançam, aquele transbordamento que há pouco você sentiu.
            Sentimentos não foram feitos para serem explicados nem rotulados. Eles gostam de flutuar, sobrevoar nossos pensamentos, tocar de mansinho no coração do outro e voltar aninhando-se  no coração onde moram. Eles gostam de voar livres e belos, com as asas bem abertas para a vida inteira.
Rilke aconselha ao jovem poeta, que lhe pergunta se seus versos são bons: " O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo, ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever”(Rilke,2009).
Os poetas sabem que sentimento não é reação ao que alguém nos provoca: é parte de nosso ser, que se propaga, exala, emana; é pássaro que nasce no  reino profundo e misterioso da nossa sensibilidade. Eles sabem que toda palavra transporta  algo que é colorido, belo e muito visível.  Em busca dessa visão, os poetas escrevem ...ou deixariam de viver.
Acredito que, se por uma unica vez, assistirmos ao voo dos sentimentos, ficaremos tão encantados, que renunciaremos para sempre a tantas perguntas e poderemos , libertos,  ler e sentir toda a poesia, escrita no livro que conta a nossa história.





Revisto e atualizado em 24 de maio de 2012

Susana Meirelles




REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA


RILKE, Rainier - CARTAS A UM JOVEM POETA; Tradução de Pedro Sussekind- Porto Alegre; L&PM, 2009

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Palavra Comprida


           João é um menino de olhos brilhantes e um sorriso branquinho, sempre à mostra, enquanto corre, atendendo à mãe.
-Menino vá olhar seu irmão!
E lá se vai João correndo depressa, para carregar a criança que chora entre fraldas úmidas e barriga vazia. Cuida do bebê um pouco como se fosse um brinquedinho que se move e chora, e um pouco como se fosse um filho ,que ele protege e acarinha.
O pai abandonou a família, mas aparece de vez em quando, entre uma cachaça e outra, para a alegria de João e conflito da mãe, que não sabe como fazer para prescindir da sua presença. O jeito tem sido contar com João, precocemente elevado à categoria de homem da casa, aos nove anos.
 João é um desses muitos meninos que, cedo, na vida, precisam aprender o significado de uma palavra comprida demais : responsabilidade.
- João, você ainda não foi comprar pão, menino?
-Mãe, deixa eu ir de bicicleta?
É porque o menino, de vez em quando, aparece, entre uma e outra tarefa imposta pela necessidade da vida:
- Mãe, posso usar o detergente para fazer bolinhas de sabão?
Ou surge por encanto, quase como um protesto, numa frase dita de passagem:
-Olha, minha tia, eu sou tão pequeno que, para pôr a mesa, preciso subir na cadeira.
João transforma em pistola de água a mamadeira do irmão. Ou faz o bebê de aviãozinho, mostrando a todos as suas peripécias. E o bebê? Apenas ri com tanto movimento , com as música a alto volume, quase solidário ao irmão que gosta de dançar  “olhando” ele.
-Minha mãe não está, moça, ela foi trabalhar para comprar o leite de meu irmãozinho.
- Você não acha, tia, que esta lata devia durar um ano?
Pois é, João, se a lata de leite durasse um ano, você poderia ser o menino João, para catar as conchinhas na praia sem pensar se deveria vendê-las, ou colher as flores do jardim de sua mãe, para presentear a professora com a qual você sonha, mas ainda não lhe conhece. E talvez, tivesse sua mãe mais próxima a você, penteando seus cabelos tão queimados pelo sol.
-Ah! A escola, tia? Só vou no final do ano.
 Não pode ser no final do ano, João, mas no começo do próximo! Ou do próximo tempo e da próxima vida nova que você espera acontecer, para não ter que brincar apenas nos intervalos e nem ter de pedir um beijo assim, tão envergonhado, como se já tivesse perdido o direito de ser uma criança.
Mas a alma de menino dá sempre um jeito de aproveitar uma distração da vida responsável para correr um pouquinho pela praia na hora de deixar o recado com a vizinha, sentindo o vento no rosto; tomar banho de chuva; brincar de água com o cachorro que precisa tomar banho; ou pirraçar o irmão mais novo ,por pura inveja da sua infância.
 Deixa para mim esses pratos, João, e vai brincar! Não brinca com o tempo porque ele parece bolinha de sabão, mas não é brincadeira e quando ele passa , a gente corre o risco de esquecer a arte de brincar de viver.
Ah!João, se eu pudesse, deixava para mim aquela palavra comprida que não me pesa mais.  E carregava palavra e criança no colo, presenteava sua mãe com incontáveis latas de leite, dava brinquedo e casa grande  para a criança linda e teimosa que insiste em viver no seu coração e brilhar nesses olhos.
Olhos tão comuns. Olhos de sol e de sal. Olhos que nos traduzem, que  nos decifram e que nos convidam a pensar. Olhos grandes e interroga(dores) de criança barrigudinha e descalça. Olhos de um menino brasileiro, habitante de uma vila qualquer.