Sentimentos são difíceis de definir: talvez por excesso de sensibilidade, eles prefiram não ser incomodados com as nossas perguntas. Certamente, porque perguntas são habitantes do reino da razão e os sentimentos vivem no reino da sensibilidade. Nós é que necessitamos unir os dois reinos pela ponte das palavras. Acontece que, muitas vezes, teimamos em usar as palavras, não apenas como um transporte, mas para traduzir, explicar, adaptar em conceitos o que é para ser apenas ...sentido.
Eu já lhe disse? As palavras são como pássaros, embora não sejam suas letras a alçar voos, mas, sim, os sentimentos que as acompanham. São eles que inundam as palavras , e delas transbordam, transformando-as em pássaros. Todo poeta sabe o quanto os sentimentos ultrapassam as palavras, já que, por serem poetas, frequentemente assistem ao momento em que esses belos pássaros libertam-se, em revoada, com suas asas abertas, da tinta, do papel , do livro onde estavam inscritos.
Rilke, usando palavras cheias de sentimento, escreve cartas a um jovem poeta. Em uma delas, esclarece: “as coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se no espaço que nunca uma palavra penetrou , e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas , cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.”( Rilke,2009)
Nós, que não somos poetas, e temos vidas que passam, vivemos da ilusão de que um dia encontraremos as palavras certas onde se encaixarão todos os sentimentos. Acreditamos nos organizar explicando tudo. E, às vezes, nem reparamos que, quando tentamos arrumar os sentimentos dentro das palavras, eles nos escapam e desaparecem como por encanto.
Ah! Mas como insistimos em afugentá-los!
Quando Saudade, branco como a pureza do encontro, vem, lentamente, sobrevoando o nosso peito cansado, começamos as perguntas geográficas:" De onde vinha? Para que vai? Vai voltar?"
Quando melancólicos, Tristeza vem, com as suas asas cinzentas - ternamente - para dentro do nosso coração; assustados, fazemos as perguntas históricas: "Por quê ? Como foi o passado? Como será o futuro?"
Se Alegria, veloz e com suas penas das cores do arco-íris, aproxima-se, saltitante, desejando habitar em nossa alma, já lhe entristecemos com nossas questões gramaticais: "Descreva, narre, interprete".
Se Amor, cor-de-rosa quente e delicado, aponta no horizonte, que repentinamente se torna mais belo, já começamos com as perguntas matemáticas: "Quanto? Quando começou? Quando acabará?"
Psiu! Amando, feche os olhos sob as estrelas, em silencio, e sinta o amor dentro da sua alma. Apenas sinta. Não busque perguntas para explicá-lo ou poderá perdê-lo. É assim que ele vai tomando corpo dentro do seu peito e o sentimento agitará as suas asas e o transportará suavemente. Se você permitir, ele voará de mansinho, indo direto ao coração daquele que é amado por você. Continue de olhos fechados, respire fundo e experimente o que o amor pode fazer, no silêncio das perguntas. Não o incomode. Aceite a transformação em sua vida, antes vazia e sem cor. Sinta. Não pense, para que as perguntas não comecem a invadir o reino dos sentimentos.
A palavra amor é o nome. Responde em parte às suas perguntas, mas note que, essas quatro letras reunidas não modificam e nem de longe alcançam, aquele transbordamento que há pouco você sentiu.
Sentimentos não foram feitos para serem explicados nem rotulados. Eles gostam de flutuar, sobrevoar nossos pensamentos, tocar de mansinho no coração do outro e voltar aninhando-se no coração onde moram. Eles gostam de voar livres e belos, com as asas bem abertas para a vida inteira.
Rilke aconselha ao jovem poeta, que lhe pergunta se seus versos são bons: " O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo, ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever”(Rilke,2009).
Os poetas sabem que sentimento não é reação ao que alguém nos provoca: é parte de nosso ser, que se propaga, exala, emana; é pássaro que nasce no reino profundo e misterioso da nossa sensibilidade. Eles sabem que toda palavra transporta algo que é colorido, belo e muito visível. Em busca dessa visão, os poetas escrevem ...ou deixariam de viver.
Acredito que, se por uma unica vez, assistirmos ao voo dos sentimentos, ficaremos tão encantados, que renunciaremos para sempre a tantas perguntas e poderemos , libertos, ler e sentir toda a poesia, escrita no livro que conta a nossa história.
REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA
RILKE, Rainier - CARTAS A UM JOVEM POETA; Tradução de Pedro Sussekind- Porto Alegre; L&PM, 2009
Revisto e atualizado em 24 de maio de 2012
Susana Meirelles
REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA
RILKE, Rainier - CARTAS A UM JOVEM POETA; Tradução de Pedro Sussekind- Porto Alegre; L&PM, 2009